10 anos depois…

Às vésperas do aniversário de 10 anos deste site, nascido em uma época em que Blogs proliferavam tanto quanto os stories Instagram se reproduzem hoje em dia, faz-se necessário revisitar textos antigos e tecer comentários sobre aquilo que foi publicado no auge dos meus 20 anos. Jaz nessas páginas um museu público de ideias, hemorragias mentais derramadas sob o teclado, reflexões expostas como fraturas, visitadas 83 mil vezes na última década, segundo estatísticas do WordPress. O que já está postado, online deverá permanecer, mas as ressalvas e esclarecimentos abaixo prestados servirão como um guia na evolução e amadurecimento de algumas reflexões aqui redigidas, em uma espécie de inventário intelectual. Embora não possamos comentar os mais de 100 artigos publicados, a magnitude da tarefa não nos exime do dever de enfrentá-la, nos termos do Pirkei Avot.

No controverso texto inaugural, questiono qual é a vida judaica ideal e argumento que “D´us nos criou com um propósito em mente! Deve haver UM ideal! Uma forma, um modelo!”. Embora me solidarize com o texto e julgue simpática tal abordagem, reconheço hoje que provinha de um entendimento equivocado sobre o judaísmo. Utilizando a mesma parábola de 10 anos antes, se eu indagasse isso ao Criador em um sonho, acho que ele adotaria o estilo talmúdico e me devolveria a pergunta: “Quem é você?”. A vida judaica ideal depende de nossas próprias particularidades, de maneira que não é possível homogeneizar uma visão de mundo única.  E mais: hoje reconheço que considerar uma determinada visão de mundo como a mais “autenticamente” judaica é um grave erro.  Os valores podem ser absolutos e as verdades podem ser objetivas, mas a diversidade e subjetividade impedem que exista, para usar minhas palavras novamente, apenas e tão somente “um ideal, uma forma, um modelo”. Aqueles que assim pensam partem de uma perspectiva etnocêntrica e simplista, que não reconhece as próprias falhas e não enxerga as incontestáveis contribuições positivas de quem advoga por uma causa diferente. A pergunta que não queria se calar, enfim, se calou.

No meu aniversário de 21 anos, examinei a suposta incoerência de uma vida religiosa denominada como ‘meio-termo’ ou ‘em cima do muro’, priorizando críticas vindas dos setores mais laicos e ortodoxos. Falhei, no entanto, em dois pontos importantes: deixei de examinar o aspecto cultural desse fenômeno e não distingui de forma correta comportamento de ideologia. Abordo a questão da ‘hipocrisia’ partindo de um ponto de vista judaico europeu ashkenazi, onde a maioria dos judeus ou se fechou contra os ideais iluministas, negando a abertura e integração com a sociedade maior, ou abraçou de corpo e alma a modernidade e a liberdade, abdicando de seu judaísmo – isso sem levar em consideração o nascimento do movimento reformista. Ora, não podemos criticar uma comunidade judaica de origem árabe ou hispânica partindo de uma dicotomia identificada nas comunidades judaicas alemãs, austríacas e polonesas. Existem diferenças culturais e particularidades históricas que precisam ser compreendidas e respeitas. Quanto ao segundo ponto, os exemplos que escrevo traduzem meras condutas contraditórias, que jamais representaram um ideal judaico ou objetivo a ser cumprido, sendo absolutamente inapropriado falar em um “reformismo Sefaradi”, na medida que não buscamos conferir legitimidade religiosa a tal comportamento. Cada um tenta se elevar aos ideais e leis da Torá conforme suas possibilidades – nós não reduzimos e subjugamos o judaísmo às nossas vontades.

Ainda em outubro de 2012, abordo a Questão Judaica do Século XXI. Mais uma vez, recapitulo a história judaica partindo de um prisma europeu ocidental, desconsiderando particularidades culturais e históricas de cada região. Pergunto, mas deixo de responder: Que solução podemos dar ao problema judaico de hoje, que pode se resumir na palavra ‘assimilação’ ou ‘crise de continuidade’? Salvamos os judeus, mas o judaísmo está a salvo? Com relação a segunda questão, dez anos depois entendo que a resposta é que sim, está a salvo. Quanto a primeira pergunta, confesso que não resumiria o problema judaico como sendo ‘assimilação’ ou ‘crise de continuidade’, que penso serem apenas um subproduto de uma questão maior e mais profunda, que é como tornar o judaísmo relevante e significativo para diferentes públicos. Utilizo fortes termos errados – ou no mínimo exagerados e pessimistas – ao mencionar “holocausto branco” ou “suicídio espiritual de uma nação”. Há muitas iniciativas e projetos interessantes que contradizem esse cenário aterrorizante desenvolvido no meu texto, isso sem contar o crescente movimento de Teshuvá em diversas comunidades. O casamento misto e a assimilação são apenas consequências ou efeitos colaterais advindos da apatia e indiferença para com o judaísmo.

Por fim, aplaudo-me e congratulo-me pelo Preciso Ir, reflexão irretocável e atual – excetuando-se os meses mais afetados pela pandemia, em que não tivemos eventos. Na época escrevi que “não comparecerei a nenhuma celebração movido exclusivamente pelo Preciso Ir”, decisão que obviamente não consegui cumprir. Trata-se de um belo e divertido artigo, talvez um dos poucos que ainda assinaria embaixo dez anos depois, complementando-o com um Preciso Convidar.

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Capítulo IV – Expiação do pecado pela palavra.

Como obter expiação por nossas transgressões? A Guemará apresenta três opiniões:

“Aqui o versículo está se referindo à expiação pelo sangue; esta é a declaração do Rabino Yehuda. Rabbi Shimon diz: (…) o verso se refere à expiação por meio da fala, ou seja, a confissão verbal. (…) Rabi Hananya ensina em um baraita: Aprendemos que o incenso que efetua a expiação, como está declarado: “E ele colocou o incenso e fez expiação pelo povo ”(Números 17:12).

Nesse artigo, não escreveremos sobre opinião anacrônica de Rabi Yehudá e Rabi Hananya, sedentas por reflexões mais aprofundadas. Nos contentaremos em examinar a poderosa expiação pela palavra. Se no catolicismo esse preceito se expressa no procedimento de confissão ao padre, no judaísmo ele dispensa intermediários humanos, encorajando o contato verbal direto entre o homem comum e seu Criador. Alguns séculos após o Talmud sugerir que a verbalização propulsiona a expiação, Maimônides regulamentará as normas que devem conduzir o processo de arrependimento (teshuvá), consagrando a confissão verbal (viduy) como uma etapa primordial para o aperfeiçoamento do indivíduo.

Nesse contexto, segue abaixo uma sugestão de Viduy para nossa década.

Acusamos. Fingindo conhecer todos os fatos, julgamos e acusamos nossos semelhantes, sem se colocar no lugar do outro. Nos apressamos em emitir juízos de valor, em rotular pessoas e em pré-julgar seus atos. Não damos o benefício da dúvida e nos sentimos no direito de apontar o dedo como se fossemos donos da verdade.

Boicotamos. Uma palavra fora de lugar já é suficiente para ‘cancelarmos’ o indivíduo. Uma expressão facial diferente basta para adjetivarmos termos preconceituosos. Excluímos pessoas por serem diferentes; em poucos segundos criamos uma primeira impressão e fechamos portas.

Cansamos. Estamos cansados toda hora, sempre apressados, sempre correndo. O ritmo frenético do corpo leva nossa alma à exaustão. Deixamos que nossos dias sejam consumidos pelo cansaço, e a passagem do tempo nos devora em sua insaciável velocidade.

Desistimos. Não temos paciência para se esforçar por muito tempo em uma mesma atividade. Não conseguimos persistir com empenho em algo que buscamos. Por termos medo de fracassar, desistimos antes da hora. Desistimos de acreditar em nós mesmos e na boa-fé do próximo.

Erramos. Persistimos em nosso erro. Somos orgulhosos demais para reconhecer o equívoco e nos desculpar. Imputamos erros aos outros, mas não olhamos para os nossos próprios. Não toleramos defeitos alheios, mas perdoamos e justificamos os nossos.

Fingimos. Somos falsos com pessoas verdadeiras. Falsificamos amizades. Fingimos fazer as pazes enquanto guardamos rancor no coração. Fingimos ter o que não temos. Fingimos ser quem não somos. Postamos, curtimos e compartilhamos mentiras personificadas. Fingimos esquecer o que é impossível não lembrar.

Golpeamos. Agredimos por meio de palavras. Golpeamos a autoestima das pessoas à nossa volta. Golpeamos nossos sonhos sem motivo. Machucamos quem está próximo de nós. Golpeamos as chances de fazer o bem.

Humilhamos. Pisamos nos outros para crescer. Fazemos piadas às custas da dignidade alheia. Envergonhamos o próximo sem nem ao menos nos dar conta disso. Comentamos o que não deve ser comentado, mas não dizemos o que deve ser dito: humilhamos através de ações e por intermédio de omissões. Humilhamos com o olhar. Humilhamos nossos pais. Humilhamos o nome de Deus. Humilhamos nosso potencial.

Idolatramos. Cultivamos nosso ego acima de tudo. Endeusamos bens materiais e transitórios. Rezamos para outros deuses e oferecemos a eles sacrifícios modernos. Idolatramos nossa inteligência e em nossa esnobe arrogância tentamos substituir Deus.

Julgamos. Nos sentimos no direito de julgar Deus por nossos deficientes critérios. Preferimos sentar na plateia, apontar o dedo e julgar, ao invés de se jogar no palco e arriscar assumir o protagonismo da peça. Julgamos com rapidez, severidade e superioridade. Julgamos livros pela capa e pessoas pelo rosto (quando não pelo bolso).

Lamentamos. Olhamos para metade vazia do copo. Reclamamos de boca cheia. Consideramos pequenos imprevistos como graves problemas sem solução. Preferimos lamentar ao invés de promover uma mudança efetiva. Ao invés de valorizar quem somos, lamentamos o que não temos.

Mentimos. Falamos uma coisa e fazemos outra. Mentimos para Deus, mentimos para nossos filhos, mentimos para nós mesmos. Não temos compromisso com a honestidade absoluta e tentamos fabricar desculpas para justificar nossa falta de sinceridade. Falamos uma coisa, mas fazemos outra. Manipulamos.

 Negligenciamos. Não atuamos com responsabilidade em nossos deveres. Superestimamos nossos direitos, mas negligenciamos nossas obrigações. Deixamos de atuar com zelo e dedicação na missão que nos foi confiada. Nos contentamos com a mediocridade e não exigimos o máximo de nós. Não perdoamos a negligência dos outros.

Ofendemos nossos amigos. Obstruímos nossos objetivos. Odiamos quem não é parecido conosco. Ocultamos, omitimos, obscurecemos e ofuscamos o que deveria ser revelado, explícito, claro e transparente. Oprimimos e olhamos mal.

Provocamos. Promovemos discussões bobas e espalhamos discórdias. Colocamos mais lenha na fogueira e provocamos incêndios apenas para brincar com fogo, sem se importar se queimamos o próximo. Instigamos brigas.  Perpetuamos o litígio. Cutucamos feridas abertas, impedindo sua cicatrização. Provocamos desordem, polêmicas e controvérsias sem motivo.

Quebramos. Quebramos relações de confiança. Deixamos o tempo e a distância atrofiarem laços de amizade. Não consertamos o que poderíamos arrumar. Rompemos relacionamentos sem pensar duas vezes. Partimos o coração do outro. Quebramos nossa natureza para atender expectativas alheias.

Roubamos. Deixamos de honrar compromissos financeiros. Furtamos nossos semelhantes de propósito. Roubamos o tempo que Deus nos brinda e o gastamos com futilidades. Roubamos os mais vulneráveis. Roubamos o bom-humor e a serenidade das pessoas à nossa volta.

Sobrecarregamos. Exigimos muito, mas ajudamos pouco. Pressionamos os outros para atender nossos próprios interesses. Impomos altas expectativas em nossos familiares. Sobrecarregamos à nós mesmos e todos a nossa volta.

Trapaceamos. Arquitetamos pequenas fraudes e malandragens. Não agimos com integridade. Desrespeitamos regras básicas que defendemos apenas na teoria. Omitimos informações nos negócios. Prometemos e descumprimos.  Esperamos que os atuem mediante pura integridade conosco, mas nossos pensamentos e segundas intenções denunciam nossas trapaças. Traímos os segredos que nos confiam.

Usamos. Usamos pessoas e amamos coisas ao invés de usar coisas e amar pessoas. Usamos e abusamos de quem nos ama. Somos oportunistas e egocêntricos.

Vaiamos. Ao invés de incentivar o próximo, desestimulamos. Não celebramos o sucesso alheio. Buscamos motivos para expressar nossa desaprovação. Manifestamos nosso repúdio sem respeitar a biografia e os valores do outro.

Xingamos. Economizamos elogios, mas criticamos sem limites. Proferimos palavras ofensivas. Disparamos palavras de baixo calão de maneira automática. Perdemos a cabeça, xingamos e, mesmo arrependidos, não pedimos desculpas.

Zombamos. Fazemos piadas com o que é sério; mas exigimos seriedade em assuntos triviais. Caçoamos das pessoas quando elas precisam de ajuda e atenção. Zombamos das palavras de Deus e rimos da opinião dos mais velhos.

Ve’Sarnu Mimitzvotecha Umimishpatecha Hatovim Velo shavá lanu Veatá Tzadik  Al kol habá aleinu  Ki emet assita V’aanachnu hirshanu.

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Capítulo III – Academia de Estudos Judaicos  

Quem deve se dedicar ao estudo da Torá?

            Prevalece uma visão errônea a respeito desse tema, especialmente entre os não observantes. A Torá Oral e a Torá Escrita são vistas como objeto de estudo exclusivo de rabinos, como se o conhecimento fosse restrito à uma população religiosa e estivesse confiando entre as quatro paredes da Yeshivá. Uma herança espiritualmente e culturalmente rica é pouco a pouco desvalorizada, esquecida e empoeirada em velhos livros fechados no armário de uma sinagoga. Não há ambição em aprender o judaísmo: quando muito, opta-se por focar em seus aspectos ritualísticos, olvidando-se de seu cárter intelectual. É verdade que a ação deve preceder o estudo, e nosso próprio tratado, mais adiante, tecerá duras críticas contra aqueles que estudam Torá sem o temor à Deus.

Não obstante, penso que estamos dando um peso desproporcional ao “Naase”, em detrimento do “Nishmá”, desprezando o valor do estudo. Isso é lamentável, na medida que atualmente temos acesso inédito à informação e ao conhecimento: se o Google nos brindou com enciclopédias online na década passada, nesta o Zoom viabiliza reuniões e aulas virtuais com qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. Estamos cada vez mais conectados, as oportunidades de aprendizagem crescem em ritmo extraordinário, mas continuamos de certa forma estagnados em nossa ignorância.

            Em paralelo, nossa ambição cresce cada vez mais, apesar dos desafios econômicos que as acompanham: desejamos os melhores trabalhos, os melhores apartamentos, as melhores férias, os melhores restaurantes. No entanto, quando se refere ao estudo judaico, nos contentamos com a mediocridade, nos restringimos ao básico e não nos incomodamos com nossas limitações. Não confrontamos nossa zona de conforto. À medida que o tempo passa, refinamos nosso gosto e amadurecemos nossos valores, mas nosso judaísmo permanece infantil. Até quando?

            Seria audacioso demais tentar diagnosticar as causas desses sintomas, de maneira que basta, por ora, descrever o cenário tal como ele se apresenta. Se é verdade que, entre adolescentes mais jovens, predomina um interesse especial sobre o judaísmo, também é verdade que essa atração não subsiste ao longo dos anos, quando deveria ser justo o contrário: quanto mais velhos somos, nos tornamos mais aptos a apreciar as profundas camadas da Torá.

            Nossa Guemará faz um apelo direto à nossa geração, que se julga ou muito rica ou muito pobre ou muito malfeitora para se dedicar ao estudo:

O pobre, o rico e o perverso (rashá) enfrentam o julgamento perante a corte celestial por sua conduta neste mundo. Ao pobre perguntam: “por que você não se envolveu com o estudo de Torá?”  Se ele responde: “eu fui pobre e me ocupei em ganhar o suficiente para pagar meu sustento”, eles questionam: “por acaso você foi mais pobre que Hilel?” (…) Ao rico perguntam: “por que você não se envolveu com o estudo de Torá?” Se ele responde: “eu era rico e me ocupei de administrar minhas posses”, eles questionam: “por acaso você era mais rico do que Rabi Elazar ben Harsum”? Ao perverso perguntam: “por que você não se envolveu com o estudo de Torá?” Se ele responde: “Eu era bonito e me ocupei de satisfazer meus instintos”, dizem-lhe: Por acaso você foi mais bonito que Yossef?”

            É digno de nota a desculpa empregada pelo rico, fundamentada em uma perspectiva contraintuitiva. Tevye, o protagonista da peça O Violinista no Telhado, deixa claro que, se fosse um homem rico, passaria horas estudando a Torá. Já a Guemará, mais realista e pragmática, nos adverte que não seria bem assim: a capacidade financeira não é sinônimo de tranquilidade; mas sim de preocupações constantes e receios contínuos. Essa visão encontra eco na máxima do Pirkei Avot: Marbe nechassim, marbe daaga. Portanto, é necessário enfatizar que, até mesmo o milionário cuja riqueza o estressa, deve estudar Torá.

            A pobreza também não deve ser usada como desculpa, pois nunca é agonizante a ponto de ser pior que a miséria de Hillel, que quase congelou ao se apoiar na claraboia do Beit Midrash durante o inverno, quando não tinha dinheiro para entrar na casa de estudos, conforme relatado pela Guemará. O pobre também deve estudar Torá, e não pode se isentar dessa obrigação em razão de suas dificuldades financeiras.

            Mas o caso mais interessante é o do rashá, o perverso, que também não escapa da obrigação do estudo. Essa proposição reverbera um famoso dilema apresentado em Massechet Berachot, que certamente mereceria ser objeto de uma reflexão apartada ao descrever os episódios que culminaram no processo de impeachment sofrido por Raban Gamliel, presidente do Beit Midrash. Em síntese, a filosofia de educação até então vigente era restringir o acesso ao estudo da Torá àqueles que se mostram à altura desta honrada tarefa: a Torá era reservada somente aos alunos que adquiriram a integridade moral. No dia que Raban Gamliel deixou o cargo, destrancaram-se as portas do Beit Midrash, os guardas liberaram a entrada e uma multidão invadiu o salão, ávidos por aprender judaísmo.

            Desde então, pobres, ricos e perversos estão obrigados a estudar. A democratização do estudo se expandiu e, muito embora algumas comunidades tenham pregado certo elitismo, reservando o estudo de Torá apenas aos mais qualificados, na maioria dos casos as massas não apenas foram agraciadas com o direito de estudar, como também o elevaram ao status de um dever religioso. Essa posição foi consolidada pela Halachá: a Lei Judaica obriga cada judeu a se dedicar ao conhecimento de sua religião e a fixar um tempo determinado na semana para o estudo – independentemente de sua condição financeira e de suas virtudes.

            Um leitor atento poderia relativizar esse acesso universalista ao estudo, observando que um dos fenômenos propulsores do Hassidismo foi, justamente, a limitação do alcance desse intelectualismo judaico. Com efeito, afirma-se que a falta de erudição das massas judaicas do Leste Europeu teria potencializado a popularização do movimento hassídico, que defendia uma conexão mais mística e espiritual com o divino. No entanto, de uma maneira geral, se essa hipótese é verdadeira, suas razões parecem estar associadas à ausência de ferramentas educativas e condições sociais propícias para expandir o acesso à educação avançada no seio dessas comunidades – e não à uma postura oficial imposta pelo próprio rabinato da época. De qualquer forma, é inegável que o hassidismo relativizou a importância e centralidade do estudo do Talmud, privilegiando outras áreas do conhecimento e diferentes métodos para se conectar com Deus.

            No entanto, se a inacessibilidade à educação religiosa avançada no Leste Europeu do século XVIII se justifica em razão de dificuldades que escapavam do controle daquelas comunidades e se os judeus daquela época estavam inseridos em ambientes hostis ao pleno desenvolvimento intelectual, não se pode afirmar o mesmo com relação à ignorância atual que prevalece em muitas comunidades judaicas, geralmente bem estabelecidas no ponto de vista financeiro e bem recepcionadas pela sociedade local. Nesse contexto, reconhecemos que, de fato, nem todos os judeus eram profundos conhecedores de seu judaísmo nos séculos anteriores. No entanto, na maioria dos casos, tal ignorância era imposta por motivos e desafios externos – não eram decorrentes de uma indiferença popular interna.

            Da mesma forma, não se pode deixar de notar o contraste entre Hillel, que era obrigado a pagar para poder ter o privilégio de estudar Torá, e muitos programas de Kiruv atuais, que oferecem uma remuneração financeira em troca do estudo. Se os soldados de Raban Gamliel existissem hoje, ao invés de proibir a entrada de novos alunos, eles provavelmente estariam marchando em busca de estudantes, construindo mais portas para maximizar o acesso ao Beit Midrash. Assim, estamos diante de uma triste ironia do destino: antes, pagava-se para estudar Torá; hoje, paga-se por estudar Torá.

            É necessário incutir a ideia de que, tanto os ricos como rabi Elazar quanto os pobres como Hilel, tanto o Tsadik quanto aquele que sofre perigosas tentações do Yetser Hará como Yossef, todos devem se esforçar para superar seus desafios particulares e se dedicar ao estudo sistemático do judaísmo.

O cardápio judaico é amplo e está apto para satisfazer os mais distintos paladares da mente. Se a Torá tem setenta faces, pelo menos uma deve espelhar a natureza da nossa alma. O Talmud desperta meu interesse, mas talvez você classifique meu estudo como discussões teóricas sem utilidades práticas, muito embora escrevo para refutar essa teoria. Talvez você prefira um enfoque mais místico, ou mais legalista, ou mais histórico, ou mais narrativo, ou mais moralista. Tal heterogeneidade é esperada em qualquer área da vida humana e não deve nos impedir de combater a apatia e a indiferença: ao contrário, deve servir para valorizar a multiplicidade de nossa riqueza espiritual.

  Nesse contexto, considerando o acima exposto, é de suma importância a criação de um instituto que se dedique ao saber judaico, cujo objetivo seja educar judeus adultos, de forma séria e organizada. Uma academia que se mostre à altura dos novos desafios, que democratize, amplie e profissionalize o acesso às fontes judaicas. Essa organização não buscará tornar as pessoas mais religiosas (embora isso possa ser recepcionado como uma consequência natural de suas atividades), mas sim mais conscientes de sua herança cultural, mais orgulhosos de sua Torá e mais conhecedores de seu judaísmo. Promoverá o diálogo entre a sabedoria da nossa religião e problemas contemporâneos, encorajará a pesquisa acadêmica em estudos judaicos, e despertará em nossa comunidade uma paixão por um judaísmo ortodoxo intelectualmente sólido, espiritualmente atrativo e emocionalmente satisfatório. Será constituída como um espaço estimulante, interativo e dinâmico, que respeita a diversidade e luta contra a ignorância, que inspira jovens a se engajar com seu judaísmo de maneira significativa e relevante, traduzindo valores judaicos de maneira inteligente e sofisticada, para ricos como rabi Elazar, para pobres como Hilllel e para pessoas acometidas pelo yetser hará como Yossef.

Quando será sua inauguração? Como disse o sionista, talvez em cinco anos, certamente em cinquenta.

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Capítulo II – Shaul e a ambivalência talmúdica

O segundo capítulo do Tratado Yomá menciona o rei Shaul pela primeira vez para provar que é proibido contar judeus, mesmo que a contagem tenha um propósito espiritual. Essa regra serve para explicar a razão pela qual os Cohanim levantavam um dedo e o responsável pelo sorteio das tarefas no Beit Hamikdash contava os dedos para realizar um sorteio das funções, ao invés de contar as próprias pessoas, conforme explicado na Mishná. Aprendemos que não podemos contar da conduta Shaul, pois o rei ordenou que cada soldado apresentasse uma ovelha, fazendo o censo militar a partir de ovelhas, e não de pessoas. Tendo mencionado um fato sobre esse personagem, a Guemará abre grandes parênteses para debater seu comportamento, supostamente desviando de seu assunto central – o serviço do Cohen no Beit Hamidkash.

            Segundo Rav Nehilai bar Idi, Shmuel opina que todas as ovelhas fornecidas aos soldados pertencem ao próprio Shaul e constata que, uma vez nomeado como líder da comunidade, o homem enriquece. Até aqui, não se emite qualquer juízo de valor sobre o primeiro monarca de Israel. Na sequência, a Guemará analisa, sem mais delongas, um dos episódios centrais da vida de Shaul, interpretando o versículo bíblico que menciona que o rei “lutou no vale”:

Rabino Mani disse: Isso significa que Shaul lutou com Deus, por assim dizer, a respeito da questão do vale. Shaul rebateu e disse: ‘Vejamos, se por causa de uma única vida que é tomada, em um caso em que o corpo de uma pessoa morta é encontrado e o assassino é desconhecido, a Torá diz que precisamos trazer uma Egla Arufá, quanto mais ainda isso deve se aplicar no caso em tela (Amalek), com tantas vidas em jogo’. E ele ainda raciocinou: ‘Se os homens pecaram, de que forma os animais pecaram? Por que, então, o gado dos amalekitas deveria ser destruído? E se os adultos pecaram, de que forma as crianças pecaram?’ Uma Voz Divina então se adiantou e disse-lhe: “Não sejas excessivamente justo” (Eclesiastes 7:16)

           

            Não é apenas o leitor moderno que estranha a ordem para aniquilar Amalek, o próprio Shaul raciocina a respeito do assunto e decide não promover a destruição do total do povo, decisão que lhe custará o trono. Shaul comete crime de desobediência, mas por quê? Por ser excessivamente justo (tsadik harbe)! É quase um paradoxo a pessoa ser tão Tsadik que deixa de ser Tsadik. Se a Guemará nos revelasse que Shaul não destruiu todo o povo porque ficou com medo dos deuses de Amalek, compreenderíamos a repreensão: sua compaixão seria transvestida de medo e idolatria, o que merece repúdio pelos critérios bíblicos. Mas quando o próprio Deus o acusa de poupar crianças por ser excessivamente Tsadik, a questão adquire maior complexidade, pois percebemos que a motivação do rei era realmente benevolente, e que não existiam segundas intenções por trás de sua misericórdia. A Guemará não apresenta Shaul como um perverso, mas apenas como um ser humano racional e moral. É digno de nota, ainda, que o rei não aplica seu próprio código moral pessoal: sua ética está fundamentada na própria Torá e na suprema importância concedida à uma vida humana, a exemplo do caso da Egla Arufá. No entanto, a Guemará prossegue:

Mais tarde, quando Saul disse a Doeg: “Vire-se e acerte os sacerdotes”, uma Voz Divina saiu e disse-lhe: “Não seja excessivamente mau” (Eclesiastes 7:17)

Contextualizando o episódio: em uma disputa por permanecer no poder, Shaul assassina oitenta e cinco sacerdotes que ele acredita serem a favor de David, seu concorrente.  A Torá nos revela que na cidade de Nov, o rei Shaul feriu homens, mulheres, crianças, inclusive as de mama, e animais. A obra Me’iri não deixa as semelhanças passarem em branco:

“O princípio aqui é que um indivíduo que não tem controle adequado sobre suas emoções ocasionalmente causará danos por meio de compaixões equivocadas. A mesma fraqueza de caráter levará a crueldade em outras situações. Assim, o pecado de Saul com Amalek e seu pecado em Nov emanam da mesma fraqueza de caráter.”

Ben Yehodaia segue a mesma linha, interpretando que a Guemará esclarece que o raciocínio de Shaul sugerido anteriormente não é válido:

“As ações de Shaul contra Nov refutam a afirmação de que sua piedade anterior foi devido ao raciocínio calculado atribuído a ele na Guemará aqui, uma vez que o mesmo tipo de lógica certamente o teria levado a poupar a cidade. A exortação para não ser excessivamente perverso portanto, se encaixa ambas as ações de Shaul.”

  Poderíamos inferir, portanto, que a decisão de Shaul de não aniquilar Amalek foi fruto de uma personalidade conturbada e desequilibrada, apenas uma compaixão artificial que teve resultados desastrosos. No entanto, outra hipótese plausível, certamente contrária aos comentaristas supratranscritos, é que a reação do profeta Shmuel no episódio de Amalek tenha despertado, indiretamente, uma crueldade excessiva no episódio de Nov: ao acusar Shaul de desrespeitar a ordem divina ao não massacrar Amalek, ao avisá-lo que perderia o reinado em razão dessa fraqueza lastimável irremediável, a experiência da misericórdia tornou-se traumática para Shaul. A perseguição contra os apoiadores de David em Nov é uma resposta dramática a todos que duvidam da força de Shaul, podemos quase vislumbrar o rei falando consigo mesmo – “muito bem, vocês não querem que um monarca misericordioso, sem problemas, mas não reclamem das consequências, destruirei todos que se levantarem contra mim, como deveria ter feito com Amalek”.

Os comentários contrários ao rei formulados por Me’iri e Ben Yehodaia perdem o brilho quando a Guemará relata na sequência que o pecado principal de Shaul, que lhe custou o trono, foi realmente ter poupado Amalek – e não ter assassinado famílias em Nov! Em outras palavras, o episódio violento em Nov, que realmente nos sensibilizaria para um impeachment, ocorreu após a severa sentença proferida contra o Shaul. Não há relação causa-consequência entre Nov e a perda do reinado.

  O mesmo Rav Huna que tece esse comentário também interpreta um versículo a favor de Shaul:

“Saul tinha um ano de idade quando começou a reinar. Isso não pode ser entendido literalmente. Rav Huna disse: O versículo significa que quando ele começou a reinar, era como um menino de um ano de idade, no sentido de que nunca tinha provado o gosto do pecado, era totalmente inocente e íntegro”

  Não são todos personagens bíblicos que mereceriam tal elogio. Não podemos deixar de notar a irônica semelhança das observações sobre Shaul: haveria uma relação entre essa qualidade inicial de ser “totalmente íntegro” e o defeito posterior de ser “excessivamente Tsadik”? Será que o crime de Shaul foi ter levado a integridade ao extremo?

Já Rav Nahman bar Itzhak opõe-se a essa interpretação. Sua opinião é nitidamente anti-Shaul: “Poderíamos dizer que Shaul era como uma criança de um ano de idade pois ele estava sempre sujo de lama e excrementos”. Tossafot não se conforma com um comentário tão ferrenho contra o primeiro rei de Israel e tenta atenuar as palavras de Rav Nahman, argumentando que talvez o sábio esteja dizendo que Shaul, em sua imensa humildade, via-se a si mesmo como uma criança suja diante de Deus. De fato, este é um bom argumento para defesa de Rav Nahman. Mas a Guemará logo relata que Rav Nahman foi acometido por pesadelos terríveis e entendeu que estava sendo punido por ofender Shaul. Os pesadelos só pararam quando ele se reverenciou aos “ossos de Shaul” e implorou perdão ao “rei de Israel”. Isso talvez indique que Saul, apesar de ter errado, não mereça tamanha desconsideração.

            A ambivalência daquele que é excessivamente justo adquire maior intensidade. Uma vez que Shaul perde direito ao trono, o novo rei poderia, pelo menos, ser um parente próximo, talvez um filho ou irmão. Por que outro indivíduo acabou sendo escolhido? Responde a Guemará:

Rav Yehuda disse que Shmuel disse: Por que a realeza não continuou a partir da casa de Shaul? Porque lá não havia falha em sua ancestralidade; ele era de linhagem impecável. A lógica é que se o líder assume uma postura arrogante com a comunidade, podem dizer à ele: Vire para trás e lembre-se de suas raízes humildes.

  Um indivíduo perde o direito ao reinado por ser excessivamente Tsadik, sua família perde o direito à realeza por não ter falhas e não ser suscetível a repreensões! Ao que tudo indica, quanto melhor, pior. E há mais:

Rav Yehuda disse que Rav disse: Por que Shaul foi punido? Porque no início de seu reinado, ele indevidamente renunciou à sua honra real (…).

  Novamente, uma aparente virtude (humildade) é usada como arma contra o rei. Moshe é congratulado por ser humilde, mas Shaul é criticado por renunciar à honra real. E, como se não bastasse, a Guemará sentencia que um erro de Shaul lhe custou o trono, mas Deus relevou dois erros de David. O grande erro, como explicamos, refere-se ao episódio de Amalek e não está associado ao ocorrido em Nov – o massacre em Nov sequer é contabilizado aqui como ‘erro’.

Shaul e sua família foram destronados não por serem cruéis, mas excessivamente misericordiosos; não por terem linhagem deficiente, mas por serem excessivamente nobres; não por serem prepotentes ou arrogantes, mas por terem renunciado à honra real!

Por que fazer tamanha digressão em Massechet Yomá? Haveria uma associação entre a conduta de Shaul e o conceito de teshuvá? A ambivalência talmúdica em face do primeiro monarca de Israel alude à alguma finalidade de Yom Kipur? O que podemos aprender sobre o arrependimento e a purificação? Seus erros – e a maneira pelo qual eles são julgados – reflete algo mais profundo? Nos parece que o julgamento de Shaul aqui proposto não é fruto do acaso, mas deixaremos que o leitor use livremente essa pista de decolarem para voar em suas próprias teorias.

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Capítulo I – Mishkan ou Sinai? (3B)

A primeira Mishná do nosso tratado anuncia os preparativos para Yom Kipur. Hoje em dia, esses preparativos se resumiriam ao envio de mensagens padronizadas de desculpas via Whatsapp e à elaboração do cardápio do pré-jejum. Há dois mil anos, no entanto, a preparação estava ligada ao núcleo central desse dia sagrado: o serviço religioso realizado no Beit Hamikdash. O Yom Kipur gravitava em torno do Templo e dos rituais ali praticados, que hoje são verbalmente reproduzidos pelo Chazan durante a Neilá, no Seder HaAvodá.

A primeira etapa do processo consistia no isolamento do Cohen Gadol. Para usar um termo que infelizmente estamos familiarizados, o Cohen Gadol deveria permanecer em quarentena por sete dias antes de Yom Kipur. Portanto, uma semana antes do jejum, ele se mudava para a câmara Parhedrin, para evitar que se impurificasse e para revisar o complexo procedimento que deveria ser seguido no dia mais sagrado do ano.

Poderíamos pensar que a quarentena é fruto de um decreto rabínico, sem paralelo na Torá Escrita. Contudo, a Guemará logo nos apresenta duas opiniões a respeito da fonte bíblica desta regra e é sobre esse debate que nos debruçaremos aqui. Reish Lakish sustenta que o Cohen Gadol deve permanecer isolado durante sete dias pois conecta o serviço de Yom Kipur ao evento no Sinai: uma nuvem, representando a glória de Hashem, encobriu o monte Sinai durante seis dias e, nó sétimo, Deus chamou Moshe de dentro da nuvem. Portanto, em Yom Kipur o Cohen Gadol também deve sair de sua casa com sete dias de antecedência. Rabi Yohanan (a Guemará ponderará depois que talvez essa opinião seja de seu mestre) alega que a separação do Cohen Gadol está enraizada no episódio de Miluim – a inauguração do tabernáculo. Antes de iniciar o serviço religioso no Mishkan, Aharon e seus filhos aguardaram sete dias, razão pela qual o Cohen Gadol também deve aguardar esse prazo. Vejamos o texto:

Rabino Yoḥanan diz que [a obrigação do Cohen permanecer isolado por sete dias] é derivada de Aharon, que permaneceu no Tabernáculo por sete dias antes de realizar o serviço no oitavo dia de sua inauguração, como o versículo declara: “Como foi feito neste dia, assim o Senhor ordenou que fizéssemos, para fazer expiação por vós” (Levítico 8:34), o que significa que esta mitzvá de isolamento não se limitava aos dias anteriores à construção do Tabernáculo; mas aplica-se também às gerações futuras: “fazer expiação” – essas são as ações realizadas no Yom Kippur, antes das quais o Sumo Sacerdote é isolado por sete dias. Reish Lakish disse a ele: Eu derivo isso do Sinai, como está escrito: “E a glória do Senhor habitou no Monte Sinai e a nuvem o cobriu [vaykhasehu] seis dias, e Ele chamou Moisés no sétimo dia desde o meio da nuvem”(Êxodo 24:16). Estes seis dias são mencionados como um paradigma, a partir do qual um princípio geral é derivado: qualquer pessoa que entrar no acampamento da Presença Divina, o local da revelação no Monte Sinai, ou o lugar onde a Presença Divina repousa, o Santo dos Santos, requer isolamento prévio por seis dias de santificação.

Para apreciar essas duas diferentes opiniões (Sinai vs. Mishkan) e suas implicações de natureza teológica, temos que investigar a verdadeiro propósito de Yom Kipur, escavando suas origens. A primeira cerimônia de Yom Kipur da História é retratada no livro Vaikrá quando, após a morte dos filhos de Aharon, Hashem instrui Moshe a orientar seu irmão a não vir toda hora ao Santo dos Santos (“kodesh”) diante do tampo (“kaporet”) que está sobre a arca (“aron”), para que não morra, pois lá Ele repousará Sua presença através de uma nuvem. Em seguida, é descrito um longo procedimento que Aharon deve seguir para entrar no Kodesh e, finalmente, anuncia-se que a entrada será no dia 10 de Tishrei, e que por sinal nessa data é necessário jejuar e não trabalhar, ocasião na qual o leitor fica sabendo que este dia é o Yom Kipur. Aharon levará o incenso (“ketoret”) e queimará diante da arca; e dessa maneira a nuvem humana se fundirá com a nuvem divina, pois a presença de Hashem, como vimos, também está repousada na Kaporet como uma nuvem. Segundo o rabino David Fohrman, esta é a essência de Yom Kipur: a conexão com a divindade, a fusão com Hashem, quando somos absorvidos e acobertados pela Shechiná. Essa conexão, por sua vez, perdoa nossas transgressões e nos purifica.

Podemos apreciar ambas as opiniões com mais clareza agora. O serviço do Cohen Gadol é associado ao Sinai, pois nas duas ocasiões (Yom Kipur e Sinai), Hashem se manifesta através de uma nuvem. Além disso, no Sinai, recebemos as tábuas da lei, as mesmas que estão guardadas dentro da arca diante da qual Aharon queima o Ketoret. Assim como Moshé foi até Deus (nuvem no Sinai) após sete dias de isolamento, o Cohen Gadol vai até Deus (nuvem na Parochet) após sete dias de isolamento.

O serviço do Cohen Gadol é associado à inauguração do Mishkan por motivos ainda mais óbvios e convincentes: o tabernáculo é o protótipo do Beit Hamidkash, a própria origem do Yom Kipur remete ao Mishkan, na medida que Aharon pode ser visto como o primeiro sumo sacerdote, que por sua vez realizou o primeiro serviço religioso deste dia sagrado. Assim como Deus repousou Sua presença na Parochet para encontrar Aharon, Ele volta a repetir o encontro todo ano no dia 10 de Tishre. Aharon é substituído pelos seus descendentes, representados na figura do Cohen Gadol. Assim como Aharon aguardou sete dias para iniciar o serviço no Mishkan e queimar o ketoret, o Cohen Gadol também deve aguardar sete dias antes de iniciar o serviço no Beit Hamidkash e queimar o ketoret.

As duas opiniões estão bem fundamentas, faz sentido traçar um paralelo tanto com o Sinai quando com o Mishkan. O que permeia essa distinção entre Aharon no Mishkan e Moshe no Sinai? O que está por trás desse debate, qual é seu pano de fundo?

Gostaria de sugerir que talvez Rabi Yohanan e Reih Lakish estejam discutindo a verdadeira natureza de Yom Kipur. Resh Lakish foca na revelação divina à Moshe, realizada no Monte Sinai, quando as nuvens da glória de Hashem cobrem o monte e o profeta lá permanece por sete dias. O dia mais sagrado do ano no consiste em nos elevarmos, assemelhando-se à Moshe, em escalarmos o monte Sinai e nos aproximarmos das nuvens divinas. Nós vamos ao encontro de Deus.

Rabi Yohanan prefere destacar a participação humana nesse encontro, quando Aharon queima o incenso diante da arca e Hashem se manifesta através de Arca. Por essa perspectiva, não é nós que vamos ao encontro de Deus, mas Ele que “desce” ao mundo físico e repousa sua presença na Arca que construímos para Sua habitação. Em Massechet Suká, os sábios validam esse conceito de “subir” e “descer”, ao afirmarem que a Presença Divina repousa à 10 tefachim de distância da Arca Sagrada, e que Moshe se distanciou 10 tefachim do Sinai. Ainda que seja difícil entender esse conceito considerando que Deus está em todo lugar, a tradição aceita tal distinção entre “em cima” e “embaixo”.

Tanto Rabi Yohanan quanto Reish Lakish preceituam a existência de uma conexão entre o Homem e seu Criador, mas cada um aborda o tema por uma perspectiva distinta: nós que nos elevamos espiritualmente para chegar aos céus, como Moshé no Sinai, ou a Presença Divina que é atraída para o local que a atraímos, como Aharon no Mishkan? Qual é a finalidade do serviço religioso do Cohen Gadol? Ascender ao trono divino (Resh Lakish) ou espiritualizar a fisicalidade (Rabi Yohanan)? O principal é a Torá, vinculada ao Sinai, ou o Beit Hamikdash, associado à inauguração do Mishkan?

            Mais adiante, neste mesmo capítulo, esse debate Mishkan vs. Sinai se repete. Rabi Yohanan sustenta que o Primeiro Beit Hamikdash foi melhor que o Segundo; mas Reish Lakish discorda, afirmando que o Segundo é superior pois os judeus estavam mais engajados no estudo da Torá. Em Massechet Shabat, Resh Lakish segue essa mesma linha de raciocínio ao determinar que “o estudo da Torá pelos jovens não deve ser interrompido, nem mesmo para construir o Templo”. Novamente, notamos a supremacia da Torá para Resh Lakish, considerada superior ao próprio Beit HaMikdash.

             Uma discussão que aparenta não reverberar importantes ramificações práticas (uma vez que ambos concordam que o Cohen deve permanecer isolado por uma semana) na realidade acoberta debates mais profundos sobre o propósito e finalidade do Yom Kipur. Devemos almejar ser como Moisés, que escalou a montanha em direção aos céus, ouviu o chamado espiritual e se elevou em direção ao divino, quase que entrando em outra dimensão?  Ou devemos nos espelhar em Aharon, que permaneceu em terra firme, preparou um incenso natural e recepcionou a visita de Hashem canalizada na Arca? O Yom Kipur simboliza a subida humana ao Sinai ou a descida divina ao Kodesh HaKodashim?

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Yom Kipur: Reflexões sobre o Tratado Yomá

Os próximos dias são conhecidos no calendário judaico como Asseret Yeme Teshuvá, dias dedicados ao aprimoramento espiritual que deve anteceder o grande dia de Yom Kipur. Em homenagem à tal data, buscarei, com ajuda de Deus, publicar aqui sete reflexões sobre o Tratado Yomá. Seguindo a mesma dinâmica dos últimos artigos sobre Shabat, escolheremos um trecho de cada capítulo da Massechet.

              Capítulo 1: Analisaremos a divergência entre Resh Lakish e Rabi Yohanan, considerando que o primeiro compara o serviço do Cohen Gadol ao evento no Sinai e o segundo prefere associar o tema ao tabernáculo. Investigaremos o verdadeiro significado desse debate teórico.

              Capítulo 2: Discorreremos sobre as contrastantes perspectivas talmúdicas sobre o rei Saul, destacando os curiosos critérios e parâmetros que a Guemará emprega ao criticar a conduta do primeiro monarca de Israel.

              Capítulo 3: Destacaremos a universalização e a democratização do estudo de Torá tal como defendido pela Guemará e tentaremos redigir uma análise crítica sobre a situação atual.

              Capítulo 4: Arrimados na opinião talmúdica de que a palavra expia o pecado, proporemos um Viduy para nosso tempo.

              Capítulo 5: Examinaremos a oração que o Cohen Gadol fazia no Kodesh HaKodashim no dia mais importante do ano.

              Capítulo 6: Nos aprofundaremos na distinção que a Guemará faz entre Mishpatim e Hukim, demonstrando como essa passagem foi objeto de intenso debate filosófico entre o Rambam e o Maharal de Praga.

              Capítulo 7: Apreciaremos como a Guemará valoriza a autenticidade nas rezas e privilegia a transparência e sinceridade na relação com Deus.

              A ideia é publicar um texto por dia até o Yom Kipur, embora seja improvável que consiga finalizar todos textos nesse período. Como diria Rabi Tarfon, não me é exigido que complete a obra, mas não sou livre para dela escapar.

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Epílogo – Um Piyut de Shabat familiar

Texto originalmente publicado no meu livro Reflexões Judaicas – Tratado Shabat, com acréscimo de links para consulta online.

Acredita-se que a família Labaton vivia perto de Madrid, mais precisamente nas redondezas do castelo Torrelobatón, construído em 1420 por Alfonso Enriquez, futuro Almirante de Castela. Com a expulsão dos judeus da Espanha em 1492, o rabino Avraham Labaton deixa o país com sua família e embarca em uma longa jornada à Síria, onde poderá exercer sua religião com liberdade e segurança. Em 1525, seu nome é mencionado em uma carta como rabino de Alepo e há fontes que dizem que o rabino faleceu nesse mesmo ano.

Duzentos anos depois, a história do nosso relato tem início com Helfon Labaton, provavelmente o neto de Avraham, que nasceu e cresceu em Alepo. Ao que tudo indica, Helfon era filho único e consta como o ancestral mais antigo da família depois de Avraham.  Helfon segue a tradição religiosa da família e torna-se rabino. Casa-se com uma garota chamada Luna, que para efeitos da nossa história será chamada de Luna I. Os tormentos do casal têm início pouco após o casamento, quando perdem o primeiro bebê. Em meados do século XVIII, abortos espontâneos e bebês natimortos não eram raros no Oriente Médio, que também contava com altas taxas de mortalidade infantil. No entanto, a tristeza que permeia a casa dos Labaton supera qualquer contexto histórico: Luna I engravida 14 vezes, mas nenhum bebê sobrevive.

Felizmente, o casal não desiste. Persiste em seu objetivo com fé, esperança e determinação. Luna I reza, seu marido estuda Torá e ambos suplicam por uma criança. Em sua obra Holy People of Syria, o rabino David Laniado conta que um dia o Rabi Helfon estava conduzindo negócios com uma mulher, que começou a seduzi-lo. Constatando estar em má companhia, o rabino não pestanejou e simplesmente saltou pela janela, sobrevivendo milagrosamente sem um arranhão. Naquela noite, diz a lenda que Rabi Helfon sonhou que teria um filho que iluminaria o mundo para a Torá e viveria uma longa vida.

No mesmo ano que se inicia a Revolução Francesa, inicia-se uma revolução na casa dos Labaton: Luna I está grávida pela décima quinta vez e seu marido intuí que, desta vez, as lágrimas derramadas jorrarão da fonte da alegria e gratidão, e não mais da angústia e do desespero. Nove meses depois, em 1780, Luna I dá à luz à um bebê saudável. No dia do Brit-Milá, Rabi Helfon anuncia que a criança se chamará Haim (vida!) Mordechai.

A criança cresce com saúde e logo se mostra prodigiosa. Haim Mordechai é matriculado na escola ainda muito jovem. Rabi Helfon pede ao professor que ensine seu filho a ler e escrever, mas este julga que ainda é muito cedo para a alfabetização, sugerindo que o garoto brinque com outras crianças de sua idade. Rabi Helfon decide dedicar horas de seu dia para alfabetizar o único filho. Depois de alguns meses, o rabino acompanha Haim Mordechai na escola e o orienta a ler algumas cartas diante do professor. Constatando que Haim Mordechai era dotado de uma inteligência acima da média, o professor garante ao pai que a criança teria uma educação especial e personalizada. Poucas semanas depois, o jovem já é capaz de ler todas as rezas do Sidur e sua aprendizagem progride em ritmo frenético.

Quando já é capaz de estudar de forma mais aprofunda, Haim Mordechai passa a frequentar o Beit Midrash Senior Moshe, consultando livros de Halachá e cartas rabínicas. A criança retira diversos livros da estante, passa horas lendo, abrindo e fechando os livros e tomando notas. O filho do responsável por cuidar do Beit Midrash repreende Haim Mordechai pela bagunça, acusando-o de desorganizar a biblioteca. Constrangido e envergonhado, a criança devolve todos os livros em seu lugar e retorna à sua casa. Poucas horas depois, o homem que o repreendeu começa a sentir dores alucinantes. O quadro clínico se agrava e os remédios não fazem efeito. O pai, também religioso, pede ao filho que relate tudo que aconteceu nas últimas horas. Ao saber que o filho de Rabi Helfon tinha sido repreendido por desordenar os livros, o responsável pelo Beit Midrash envia mensageiros para a casa dos Labaton, implorando que a criança perdoe o comportamento de seu filho. O jovem Haim Mordechai deixa claro que aceita as desculpas e que não guarda nenhum rancor. Imediatamente, o filho do encarregado do Beit Midrash recupera sua saúde e as dores repentinamente cessam. Depois deste incidente, a fama de Haim Mordechai se alastra de maneira veloz. Atualmente, há vendedores que comercializam aqui os livros supostamente estudados e anotados por ele há duzentos anos.

Não tardou para que Haim Mordechai adquirisse o respeito de seus pares e se tornasse um dos principais rabinos de Alepo do século XIX. Conta-se muitas histórias sobre suas façanhas. Rabi Haim Mordechai compõe poemas religiosos (piyutim), que ainda são entoados por algumas comunidades judaicas (ouça aqui), escreve diversos manuscritos e publica duas obras: Ben Yair, expondo suas drashot da Torá, e Noach HaShulchan, apresentando seus comentários e responsas halachicas, com base no Shulach Aruch. Ambos os livros serão republicados no século XX e XXI em Jerusalém, e Rav Ovadia Yossef mencionará a opinião do rabino em seus escritos. É possível consultar gratuitamente suas duas obras aqui e aqui.

O rabino casa-se com Morhaba e tem três filhos homens: Helfon (em homenagem ao seu pai), Eliezer e Joseph, patriarcas da dinastia rabínica dos Labaton, presente até hoje em algumas comunidades sefaradim. O filho primogênito falece antes do pai, deixando-lhe quatro netos, que são criados em sua casa.

Rabi Haim Mordechai Labaton, filho de Helfon e Luna I, assume o posto de Rosh Beit Din (líder do tribunal rabínico) e torna-se Rabino-Chefe de Alepo. Passa a ser reverenciado tanto por seus correligionários quanto por árabes da região. Escreve que a mitzvá de Chessed pode ser cumprida com não-judeus, dedica um terço dos seus lucros à tsedaka e é nomeado tutor dos órfãos da comunidade, assumindo a responsabilidade de administrar a herança deixada pelos falecidos pais até a criança atingir a maioridade. Atua como mediador de conflitos, tanto empresariais quanto conjugais, e dedica-se a restabelecer a paz entre as pessoas. Desempenha um papel primordial na defesa contra a acusação de libelo de sangue em face dos judeus de Alepo, falsamente denunciados por sequestrar o jovem cristão Mousan. De forma semelhante ao Mordechai de Purim, Haim Mordechai pede que os judeus rezem e supliquem por salvação. Consegue obter a informação que Mousan está escondido em uma igreja, e logra convencer o governador a entrar no local para procurar o garoto, que acaba sendo localizado.

Rabi Haim Mordechai recebe uma medalha de honra do governo turco-otomano por suas atividades públicas. Conta-se que, certa vez, um comerciante árabe forneceu alimento para tropas turca-otomanas e, posteriormente, o oficial responsável se recusou a pagar as despesas. O comerciante levou o caso ao rabino e implorou por ajuda, argumentando que os recibos estavam assinados e que se o governo não pagasse o valor devido o prejuízo financeiro o levaria à falência. Rabi Haim Mordechai logo redigiu uma carta a favor do comerciante, registrando que o governo deveria pagar o débito. Ao constatar que o comerciante trazia uma carta assinada de próprio punho pelo rabino, o oficial imediatamente pagou a quantia devida. Ao receber a quantia do oficial, o comerciante enviou um presente ao rabino, que educadamente recusou receber qualquer pagamento.

Muitas outras histórias e lendas são contadas a respeito do Rabi Haim Mordechai, líder de uma comunidade judaica intensamente religiosa, alheia ao Iluminismo e à assimilação que predominava entre os judeus da Europa Ocidental. Mas temos que avançar em nosso relato.

Em 1850, próximo ao 70º aniversário do rabino, Morhaba falece. Rabi Haim Mordechai escreve uma Halachá a respeito do tema. De acordo com sua opinião, a mitzvá de Pru Urbu (procriar filhos) é cumprida mesmo quando o casal possui apenas filhos do sexo masculino ou apenas do sexo feminino. No entanto, em caso de falecimento ou divórcio de um dos cônjuges, caso o outro ainda tenha capacidade para ser genitor, ele possui a obrigação de se casar novamente, para tentar gerar filhos do sexo oposto.

Dito e feito. Após o luto, nosso rabino se casa com outra mulher, que provavelmente tem um terço de sua idade. Quem era a jovem? De onde veio? É feliz no casamento? Não sabemos nenhuma informação a respeito de sua identidade. Mas sabemos que Rabi Haim Mordechai, que já era avô, torna-se pai novamente aos setenta e poucos anos – e que desta vez é agraciado com uma menina. O nome? Luna, em homenagem à sua mãe. Conta-se que o rabino havia prometido à sua nova esposa que viveria o suficiente para casar a filha. E assim o faz. Cerca de dezessete anos depois, Rabi Haim Mordechai acompanha Luna II até a Hupá e a entrega ao proeminente rabino Ezra Soued, que mais tarde também assumiria o posto de Rabino-Chefe de Alepo, tal como o sogro.

Dois anos depois, na noite do dia 29 de maio de 1869, Rabi Haim Mordechai Labaton deixa este mundo com 89 anos, quase o dobro da expectativa de vida da época. É sepultado próximo ao local onde acredita-se que Eliahou HaNavi esteja enterrado. Seu neto assim descreve o falecimento:

“No dia 20 de Sivan, motzaei shabat kodesh, todos grandes rabinos estavam reunidos para rezar Arvit, e a face do rabino Haim estava mais iluminada e brilhante que o normal, e ele respondeu Amen Iehe Sheme Raba com toda sua força e santidade. Depois da havadalá, um vento forte invadiu o recinto e apagou as velas, logo depois um relâmpago alto quebrou uma janela perto da cama do rabino. Nesse momento recitamos Shema Israel.”

Luna II e Ezra Soued têm dois filhos e uma filha. O primogênito recebe o nome do avô paterno, Moshe Soued – Moussa, em bom árabe. Nós não sabemos muito sobre a vida de Moussa, mas as fontes garantem que ele se casa com Rina Chammah.

Moussa e Rina, por sua vez, têm vários filhos. Um deles, gêmeo, falece quando criança.  Vamos nos concentrar no menino mais velho e na menina mais velha do casal Soued. O menino mais velho se chama Ezra, tal como o avô paterno. A menina mais velha deve adquirir o nome da vovó Luna II. No entanto, talvez influenciados pela cultura francesa e pelo advento da modernidade, os pais decidem chamar Luna III de Adele. Adele se casa com Daoud e decide homenagear um dos filhos com o nome do seu irmão que faleceu precocemente – Siahou. Tal como Helfon Labaton, o casal decide inserir “Haim” no nome. Que viva!

Estamos agora em 1966. Siahou Haim Dayan, tataraneto do Rabino-Chefe de Alepo Haim Mordechai Labaton, bisneto do Rabino-Chefe de Alepo Ezra Soued, tem 26 anos e vive no Brasil. Adele procura uma noiva de boa família para seu filho Siahou. Obviamente, nenhuma família é tão boa quanto sua própria. Adele tem uma sobrinha, Denise, filha de seu irmão mais velho (Ezra), o primogênito da casa dos Soued. Denise tem quatro filhas e um filho (Sion), quase todos já casados. Uma de suas netinhas que acaba de completar 18 anos, uma bela jovem chamada Bella, filha de Sion, vive em Beirute e é a candidata ideal para Siahou. Bella e Siahou se casam na sinagoga Maguen Avraham na capital libanesa e o resto é história que já conhecemos. Sua filha mais velha, “Luna IV”, é minha mãe Lina (nome mais próximo do original que Adele).

Aterrissamos em 2021, ano em que o mundo recebe a “Luna V”, minha querida filha Lina, que dará continuidade à essa fantástica jornada. Estamos aqui porque meu xará decidiu sair do conforto da Espanha rumo ao desconhecido, priorizando uma vida judaica plena acima de tudo. Estamos aqui porque Luna I não desistiu de ter filhos mesmo quando isso parecia impossível. Estamos aqui porque seu filho decidiu se casar novamente depois de completar 70 anos de idade, para trazer Luna II ao mundo, e assim sucessivamente. Quando criança, tive o privilégio de conhecer “Luna III”, teta Adele, muito embora as poucas lembranças que conservo dela estejam desbotadas pelo transcurso do tempo. Lembro-me dos doces árabes que eram servidos no apartamento da rua Albuquerque Lins e agora me pergunto se Luna II teria ensinado as receitas à neta.

 O nome carrega uma história, e esta história, por sua vez, nos brinda com uma poderosa ponte entre as gerações, que conecta presente, passado e futuro. Encerramos essas reflexões sobre o Tratado Shabat com o poema sobre o Shabat composto pelo tataravô do meu avô. Nas noites de sexta-feira, repito o mesmo Kidush que eles repetiam e é provável que até as comidas servidas sejam as mesmas, não obstante três séculos nos distanciem um do outro. Antes do Hamotzi, nós três abençoamos nossas pequenas Linas. Quando elas nos abraçam, somos envolvidos pela mesma ternura e carinho. Antes de dormir, recitamos o mesmo Shema Israel deitados ao lado dela. O quarto está escuro, mas nosso mundo iluminado. Ela adormece, mas nós que estamos sonhando.

Árvore Genealógica de Luna I à Luna IV, disponível no site Farhi.org
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Hineni: Capítulo XXIV –  Uma tigela de mel temperada com sementes de mostarda (153B)

               Neste último capítulo de Shabat, a Guemará retoma um tema do primeiro capítulo do Tratado, ao abordar um dos dezoito decretos promulgados de acordo com a posição de Beit Shamai. A maioria dos decretos, já expostos no primeiro capítulo, versa sobre assuntos de pureza e impureza. Rabinos de gerações posteriores têm visões diferentes sobre a eficácia desses decretos rabínicos, apesar de não questionar sua validade e vigência.

                O cerne do dilema é atemporal, respaldado por duas posições antagônicas que até hoje são objeto de debate:

Sábios de gerações posteriores discordaram com relação a esses dezoito decretos: Foi ensinado em uma Braita que Rabi Eliezer diz: Naquele dia eles ‘acrescentaram uma seá’ (medida), ou seja, eles fizeram bem em emitir esses decretos, que construíram uma cerca em torno da Torá para evitar sua violação. Rabi Yehoshua diz: Naquele mesmo dia eles ‘reduziram uma se’a’ (medida), ou seja, porque esses decretos são difíceis de observar, eles não apenas levarão as pessoas a violar os decretos, mas também a violar as próprias proibições da Torá.

                Emitir decretos e proibir mais atividades é bom ou ruim? Isso nos resguarda de violar mandamentos divinos ou, pelo contrário, acaba encorajando mais violações? Como se confessasse a obscuridade do exemplo de acrescentar ou diminuir uma medida, a Guemará nos brinda com duas belas parábolas para ilustras as diferentes opiniões:

Foi ensinado em outra Braita: Os Sábios articularam uma parábola para ilustrar a opinião de Rabi Eliezer. A que esse assunto é semelhante? É semelhante a uma cesta cheia de abóboras e vegetais em que se coloca sementes de mostarda. Assim como a cesta também preserva a mostarda, o decreto também perdurará. Eles também articularam uma parábola para ilustrar a opinião de Rabi Yehuda: A que este assunto é semelhante? É semelhante a uma grande tigela cheia de mel em que se colocam romãs e nozes. Assim como a tigela expele o mel de dentro dela, o decreto fará com que as proibições da Torá sejam violadas.

                Qual é a natureza desses decretos? São como nozes e romãs (de novo, as romãs) que expelem o mel da tigela ou são como uma semente de mostarda, preservada na mesma cesta que as abóboras e vegetais? Nossa intenção não é responder essa pergunta, mas descortinar os segredos que permeiam essas formidáveis parábolas, com o objetivo de compreender melhor o que está em jogo neste debate.

                Rabi Eliezer sustenta que os decretos rabínicos rigorosos são como sementes de mostarda. O principal da cesta é a abóbora e os vegetais – os mandamentos da Torá. Assim como a cesta sustenta esse elemento essencial, também sustentará os “temperos” rabínicos. Por quê? Porque se o proprietário da cesta age com cautela e se preocupa em não deixar as sementes de mostarda caírem e se extraviarem, por óbvio os vegetais também estarão seguros: de maneira quase automática, garante-se que o vegetal estará são e salvo na cesta. As frágeis e minúsculas sementes de mostarda reforçam a necessidade de cuidar da cesta como um todo com mais atenção e seriedade, o que garante que os vegetais serão preservados. De acordo com Rabi Eliezer, os decretos rabínicos ajudam a efetivamente criar um cerco ao redor da Torá, para que as pessoas não venham a praticar condutas proibidas. Se eu não deixo as sementes caírem da cesta, por óbvio também não derrubarei os vegetais e as abóboras.

               Uma outra propriedade da semente que merece atenção e destaque é o potencial fisiológico que a natureza lhe reserva. Se bem plantada e semeada, uma pequena semente pode originar uma frutífera árvore – por essa perspectiva, os decretos rabínicos conservam um potencial dentro de si, capaz de florescer e gerar frutos. Para Rabi Eliezer, os decretos não apenas impedem que violemos os mandamentos da Torá, mas também podem, eles próprios, nos nutrir espiritualmente.

                  Coincidência ou não, esta Braita não foi a primeira a usar semente de mostarda em uma parábola – e talvez a equiparação entre a semente e o decreto rabínico não tenha sido fruto do acaso. O Novo Testamento, em três ocasiões, nos diz que Jesus equiparou o Reino dos Céus à….uma semente de mostrada! A Braita vem contrapor a Parábola do Grão de Mostarda cristã: a semente deve ser comparada aos decretos humanos, precisamente aqueles tão criticados pelos oponentes do judaísmo rabínico.

                Rabi Yehuda compara os decretos a romãs e nozes que fazem o mel transbordar da tigela. Por que mandamentos da Torá são equiparados ao mel? A resposta óbvia é uma analogia à doçura e sabor do mel: as proibições da Torá não dever ser vistas como uma amarga limitação à liberdade humana ou um fardo azedo que recai sobre nós, mas como uma maneira de adocicar nossa existência nesse mundo. Em Rosh Hashana, comemos maçã com mel, para que o ano seja bom e doce – a doçura acompanha o que é bom e, portanto, se encaixa como uma luva quando nos referimos à Fonte da Bondade.

                Mas há algo a mais aqui.

              Como é feito o mel? Segundo a Revista Superinteressante, a fabricação do mel começa com a coleta do néctar nas flores. O néctar é guardado em uma bolsa no corpo da abelha e levado para a colmeia. Glândulas localizadas na cabeça das abelhas secretam duas enzimas que reagem com o açúcar do néctar. Uma enzima, chamada invertase, transforma o néctar em glicose e frutose. A outra, glicose oxidase, lhe confere acidez, impedindo sua fermentação. Batendo as asas, a abelha seca o excesso de água presente no néctar. Em resumo, do início até o fim, as abelhas participam ativamente da produção do mel. O néctar já existe nas flores, mas quem o transforma em mel são as abelhas.

               Quando Rabi Yehuda diz que os decretos rabínicos acabam estimulando a prática de mais atividades proibidas pela Torá, ele não quer dizer que os decretos são essencialmente contraproducentes ou que devemos apenas respeitar a Torá Escrita em seu estado bruto, sem a tradição oral. Rabi Yehuda sustenta que a Torá é como um mel – e a única maneira natural de produzirmos mel é através da participação ativa das abelhas! Rabi Yehuda reconhece que as proibições da Torá não devem ser dissociadas das interpretações rabínicas, ele admite a necessidade de intervenção humana para produção deste “mel”. Segundo Rabi Yehuda, o papel dos sábios é transformar o néctar divino em glicose e frutose, impedir sua fermentação, secar o excesso de água, enfim, “produzir o mel” – mas não nos cabe adicionar “nozes e romãs” nessa tigela.

                  A jurisdição rabínica é eficiente quando se limita a produzir o mel do néctar Torá. Dessa forma, a comparação com o mel não se limita à doçura, mas também indica a moderação de Rabi Yehuda: ele não nega que os rabinos devem lapidar a Torá e definir a Halachá. Seria diferente se comparasse os mandamentos da Torá a tâmaras, por exemplo, que também são doces, mas que não exigem qualquer intervenção adicional externa, bastando que se plante uma tamareira.

                É interessante constatar que não podemos trocar as comparações: no caso de Rabi Eliezer, as sementes de mostarda preservam os vegetais sólidos, mas não protegeriam o mel da cesta, que é líquido e pode transbordar. No caso de Rabi Yehuda, o contrário ocorre: as nozes e os romãs podem induzir a tigela a expelir o excesso de mel em razão de sua massa e seu peso, mas as delicadas sementes de mostarda não possuem força suficiente para isso, o mel permaneceria imóvel em seu lugar. Talvez a fusão das duas parábolas resulte na imagem ideal: uma tigela de mel temperada com sementes de mostarda.

                Finalizaremos o Hineni com essas parábolas, que ilustram a intersecção entre divindade e humanidade, Torá Escrita e Torá Oral.

                Foram 24 reflexões, uma dedicada a cada capítulo de Massechet Shabat, fabricadas ao longo de 48 dias. 24 também é o número de livros que compõem o Tanach – a Torá Escrita. Minha intenção foi tentar extrair um pouco do néctar talmúdico para produzir um mel próprio, doce o suficiente para o paladar moderno. Espero que essa humilde colmeia literária tenha sido suficiente para apetecer os poucos leitores que aqui navegam e que, através da escrita, tenha sido possível descrever o sabor da Guemará, ou pelo menos ter despertado a curiosidade de provar seu gosto. Aos que embarcarão nessa aventura, desejo um bom apetite!

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Hineni: Capítulo XXIII – O que realmente importa (153A)

                O capítulo XXIII concorre apenas com o capítulo XVI na variedade de trechos que merecem comentários e observações. Suspeito que seria possível escrever 24 reflexões judaicas focadas apenas nesses dois capítulos. No entanto, apesar das numerosas alternativas, não foi difícil selecionar a passagem abaixo:

Rabi Elazar suscitou uma pergunta diante de Rav: Que tipo de pessoa terá direito ao Mundo Vindouro? (“Ben Olam-Habá”?)

                Quem merece a recompensa espiritual? Como reservar seu assento no Mundo Vindouro? Quem participará da vida eterna conectada com Hashem? Pense em todas as seiscentas e treze respostas que poderiam ser dadas à essa pergunta! Estamos navegando no Tratado de Shabat, poderíamos muito bem vincular a observância do Shabat com o Olam Habá. Não gostou? Sugeriria enfatizar a centralidade do estudo de Torá acima de tudo, pois dessa forma conhecemos Deus e refinamos nossa alma – é justo que nos deleitemos no Olam Habá depois de uma vida dedicada ao Criador e Seus mandamentos. Uma forma interessante de avaliar se a pessoa merece o Olam Habá seria examinar seu legado, analisar se o falecido logrou formar uma turma de discípulos, se ele disseminou sabedoria, se enalteceu e santificou o nome de Deus neste mundo. Outra maneira seria enfatizar menos intelectualidade e destacar mais o sentimento: participarão do Mundo Vindouro todos que, em vida, serviram Hashem com alegria, que cumpriram as Mitzvot com afinco, sempre com um sorriso no rosto. Todas essas respostas seriam plausíveis, mas a Guemará oferece outro ponto de vista completamente distinto e, por isso, surpreendente:

Ele respondeu-lhe: Podemos deduzir isso do versículo: “E os teus ouvidos ouvirão uma palavra atrás de ti, dizendo: Este é o caminho, anda por ele, quer ele torne para a direita ou à  esquerda” (Isaías 30:21). Em outras palavras, se as pessoas elogiam o falecido dizendo que outros devem seguir seu caminho, ele deverá ter uma participação no Mundo Vindouro.

                O que realmente importa? A marca que deixamos na vida das pessoas, as boas lembranças eternizadas nas memórias dos outros, o conteúdo da nossa Mishmará! Esta é a poderosa mensagem que está sendo transmitida aqui: não importa quão ‘religioso’ o indivíduo se mostra, no fim das contas o que realmente é levado em consideração é como ele tratou as outras pessoas, como desenvolveu seu caráter e de que forma lapidou suas virtudes. Ele impactou positivamente a vida das pessoas ao seu redor? Ele foi fonte de luz e bençãos? Ou viveu recluso e só para si? Nossa entrada no Olam Habá não depende apenas da nossa conexão com o divindade – está associada às nossas relações humanas. A Guemará segue nessa mesma linha:

Ao interpretar o versículo: “E os oradores perambulam pelo mercado” (Eclesiastes 12:5), o povo da Galiléia diz: Faça coisas que você gostaria que as pessoas dissessem em seu discurso fúnebre diante de sua sepultura. O povo da Judéia diz: Faça coisas que você quer que as pessoas digam em seu discurso fúnebre atrás de sua sepultura. A Guemará comenta: E eles não discordam; este Sábio expressou de acordo com a norma em seu lugar, e este Sábio expressou de forma diferente de acordo com a norma em seu lugar. O costume na Galiléia era que o orador discursasse diante da sepultura, e o costume na Judéia era que o orador discursasse atrás da sepultura.

                Conhecemos muitas pessoas que, apesar de não serem estritamente observantes ou religiosas, nunca se recusaram a entender a mão ao próximo. Carecem de uma visão sofisticada e profunda do judaísmo, mas honram a ética, são altruístas e se engajam em causas sociais ou humanitárias. De outro lado, conhecemos muitas pessoas que observam as minúcias e os detalhes dos rituais, mas são egocêntricas ou isoladas, indiferentes aos problemas alheios, focadas em fortalecer sua conexão com Deus dando ênfase apenas nas Mitzvot entre o Homem e seu Criador. E o que dizer daqueles que, amparados em supostos motivos religiosos, causam divisões e rixas internas e promovem difamações pretendendo agir em nome da Torá? Essa Guemará deixa muito claro quem será recompensado e valorizado, e quais critérios serão utilizados para entrada no Mundo Vindouro.

                O que será dito diante ou atrás da sepultura? É este material que indicará se a pessoa é digna do Olam Habá ou não. Que tipo de pessoa ele era? O que ele logrou contribuir em vida e de que maneira trilhou sua jornada? Essa passagem da Guemará advoga pela democratização do Olam Habá – o Mundo Vindouro não é reservado à elite espiritual, está disponível para as massas. Esse é o verdadeiro significado de “kol israel iesh lahem helek la olam haba”: todos tem uma parte do Olam Habá, mesmo os que não possuem aptidões para estudar o Talmud, mesmo os que cresceram em casas não religiosas, mesmo os que não aprenderam a ler hebraico quando crianças. O Mundo Vindouro está ao alcance de todos – basta que você viva de uma maneira que as pessoas sintam sua falta quando você não estiver mais aqui. Veja mais um comentário da Guemará nesse sentido:

Rav Yehuda, filho de Rav Shmuel bar Sheilat, disse em nome de Rav: Pelo discurso fúnebre sobre uma pessoa, fica claro se ela tem ou não uma parte no Mundo vindouro. Se os ouvintes sofrem e choram durante o elogio, é claro que a pessoa era justa.

                O que causa comoção nos ouvintes? O que uma pessoa precisa fazer ou deixar de fazer em vida para que no futuro chorem sua morte? Hoje há uma crença generalizada de que o Olam Habá é somente adquirido por aquela pessoa que espera seis horas entre refeições de carne e leite, come mais Matsá do que o necessário em Pesssach, mergulha sete vezes na Mikve antes de Yom Kipur. Esquecemos que o caráter humano da nossa vida é tão religiosamente importante quanto às tais questões técnicas, quando não mais.

               Em que casos as pessoas apontarão para o falecido e dirão “este é o caminho”? Qual impacto ele deve deixar para que seu sepultamento sensibilize o coração dos que aqui ficam? Parece claro que não adianta nada respeitar todas as leis se a observância religiosa é feita às custas ou em detrimento das relações interpessoais! Um história relatada no Tratado de Taanit converge exatamente nesse sentido:

Nesse ínterim, dois irmãos foram ao mercado. Eliahou HaNavi disse ao Rabino Beroka: Esses dois também têm uma parte no Mundo vindouro. O rabino Beroka aproximou-se dos homens e disse-lhes: Qual é a sua ocupação? Disseram-lhe: Somos palhaços (baduchei) e alegramos os deprimidos. Além disso, quando vemos duas pessoas brigando entre si, nos esforçamos para fazer as pazes entre elas.

                Quando esses irmãos usam seu tempo e talento para despertar alegria e sorrisos de pessoas entristecidas, conquistam um espaço no Mundo Vindouro. Quantos anciãos já devem ter passado por aquele mercado e olhado com desdém para os dois palhaços? Quantas reprimendas já devem ter escutado? “Parem com essas bobagens, parem de perder tempo, amadureçam logo e vão para o Beit Midrash estudar Torá!”. Eliahou HaNavi deixa claro as regras que definem o jogo da vida e esclarece que sua vitória é mais simples, humana e aferível do que imaginávamos.

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Hineni: Capítulo XXII – Romãs, espinhos, camelos, e a eternidade da Halachá (144B)

            No capítulo anterior, questionamos se questões essencialmente não legais poderiam influenciar a Halachá. Vimos que a possibilidade de arruinar frutas é suficiente para suspender as leis de Mutkse, autorizando que se carregue uma cesta que contém, além dessas frutas, uma pedra proibida. Teoricamente, não poderíamos mover a cesta, pois além de proteger as frutas ela serve de base para um objeto proibido. Contudo, na prática os sábios autorizaram que se movesse, pois do contrário seriamos obrigados a estragar o alimento. Nesse capítulo, permaneceremos com o mesmo assunto, explorando um outro viés sob um tema distinto – mas preservando a temática das frutas.

                É proibido espremer frutas no Shabat – ninguém se aventura a opinar contra essa lei, unânime no Talmud. No entanto, apenas as frutas que costumamos espremer nos dias da semana estão inclusas nessa proibição, o que abre margem para a seguinte discussão: quando digo ‘costumamos’, a quem estou me referindo? Refiro-me a você e mim? Aos judeus sul-americanos? Refiro-me à um costume universal? Ou apenas ao costume do meu bairro? Essas perguntas são essenciais para definir a Halachá de espremer no Shabat, posto que o costume é um requisito para caracterização da proibição.

                Nesse contexto, a Guemará traça uma discussão sobre o romã, o que por si só é interessante na medida que até hoje, dois mil anos depois do debate, ainda identificamos diferentes costumes sobre espremer ou não essa fruta em especial:

Foi ensinado na Braita citada acima que as pessoas da casa de Menashya bar Menahem espremiam romãs nos dias de semana. Isso indica que é comum as pessoas espremerem romãs e, portanto, é proibido fazê-lo no Shabat. Rav Nahman disse: A halakha está de acordo com a prática das pessoas da casa de Menashya bar Menahem. Em outras palavras, espremer romãs é considerado um costume típico e, portanto, é proibido no Shabat.

                Para Rav Nahman, o fato de alguns indivíduos agirem de certa forma é um fator suficiente para determinar que essa conduta é normativa. Mas o comportamento de um ou outro indivíduo diferente que decidiu espremer romãs não seria irrelevante na determinação da Halachá para a população em geral? Esta é a posição de Rava:

Rava disse à Rav Nahman: ‘Faz sentido que, porque ele se manteve de acordo com a prática do povo da casa de Menashya ben Menahem, a Halachá esteja de acordo com sua opinião? Menashya bem Menahem constitui a maioria do mundo?’ Visto que a maioria das pessoas não espreme romãs, a prática das pessoas da casa de Menashya ben Menahem deve ser irrelevante em relação à prática típica dos outros.

                Rav Rahman exerce o direito à sua réplica, ocasião na qual tenta provar suas alegações:

Rav Nahman respondeu: Sim, em casos desse tipo, as regras de Halachá são baseadas até mesmo em práticas que não são universais, como aprendemos em uma Mishná que aborda a proibição de Kilaim, particularmente a produção de alimentos proibidos em um vinhedo. Com relação a uma pessoa que cultiva espinhos em um vinhedo, Rabi Eliezer diz: Ele transformou a colheita em uma mistura proibida (espinhos e vinhas). E os rabinos dizem: Só uma safra que as pessoas costumam cultivar torna um vinhedo proibido. E Rabi Hanina disse: Qual é a razão da opinião de Rabi Eliezer? Porque nas Arábias eles cultivam os espinhos nos campos para alimentar seus camelos. Lá, os espinhos são tratados como um cultivo genuíno. De acordo com esta opinião, uma vez que os espinhos são cultivados em um lugar, eles são considerados cultiváveis e significativos em todos os lugares. O mesmo raciocínio se aplica à questão do suco de romãs.

                Agora temos duas questões em jogo: espremer romã deve ser proibido no Shabat, mesmo que, com exceção de Menashya ben Menahem, essa fruta não costuma ser espremida nos dias da semana? Cultivar espinhos em um vinhedo deve ser proibido por Kilaim mesmo que, com exceção dos habitantes da Arábia, os agricultores não costumam cultivar espinhos? Hábitos peculiares são suficientes para anular costumes gerais? Ao buscar uma solução para essas perguntas, a Guemará adota um critério objetivo e refuta a comparação entre os dois casos:

A Gemara rejeita esta resposta: isso é comparável? A Arábia é um lugar, e um costume praticado em um país inteiro é significativo. Aqui, no que diz respeito à prática da casa de Menashya bar Menahem, que era um indivíduo, sua opinião é tornada irrelevante pelas opiniões de todos as outras pessoas.

                Por essa perspectiva, há um aspecto quantitativo e geográfico: o costume individual de Menashya é insuficiente para suplantar o costume universal de não espremer romã, mas o hábito coletivo dos habitantes da Arábia de cultivar espinhos é suficiente para caracterizar a proibição de Kilaim. Rav Nahman não pode fundamentar sua opinião em Rabi Eliezer, pois não estamos tratando do mesmo caso.

                A rejeição da opinião de Rav Nahman possui fundamento, pois estamos ignorando um costume peculiar com o intuito de respeitar e validar as práticas gerais universais. Frutas espremíveis são aquelas assim consideradas pela maioria das pessoas, de forma geral, mesmo que uma ou outra família gostam de se deliciar com sucos alternativos. Não obstante, há certa dificuldade em compreender a prevalência do costume arábico em detrimento do costume de outras regiões do mundo, de acordo com Rabi Eliezer. Por que o cultivo de espinhos de uma região define a regra universal de Kilaim? Reforcemos a pergunta: por que Rabi Eliezer não proibiu o cultivo de espinhos em um vinhedo localizado apenas nas Arábias, posto que somente lá consideram o espinho como um produto cultivável, em razão dos camelos? Por que ele considera que o peculiar costume das Arábias deve influenciar uma Halachá que impacta judeus que vivem em outras regiões?

                O Rashba oferece bons insights para entender tudo isso. Segundo o comentarista, o costume na Arábia deve impactar a avaliação do comportamento normativo em lugares onde os agricultores de fato criam camelos, pois os espinhos são utilizados para beneficiar seus animais. Por outro lado, não há nenhuma razão que justifique o costume da casa de Menashya bar Menahem de espremer romãs e, portanto, suas preferências pessoais são irrelevantes na determinação das normas gerais de Halachá.

                   Dessa forma, além do aspecto geográfico e quantitativo, avaliamos as razões que lastreiam determinado costume. Se os judeus das Arábias cultivassem espinhos apenas por preferências pessoais ou talvez meramente estéticas, essa conduta seria inapta para definir a Halachá de Kilaim. No entanto, quando outorgam certo valor à tal prática e invocam motivos concretos, o cultivo de espinhos adquire importância suficiente no plano haláchico. É digno de nota que, por essa perspectiva, seria proibido cultivar espinhos em um vinhedo apenas nas regiões que possuem o denominador comum com as Arábias, i.e locais em que se criam camelos. Dessa forma, não há uma universalização da regra por conta de uma região específica, o que torna a opinião de Rabi Eliezer mais palatável e compreensiva.

                De qualquer forma, o Rambam define que a Halachá segue a opinião da maioria – e não de Rabi Eliezer – posição igualmente sacramentada pelo Shulchan Aruch. (Sefer Zera’im, Hilkhot Kilayim 5:18; Shulchan Aruch, Yoreh De’a 296:14). Dessa forma, o costume das Arábias não define a Halachá, até mesmo em lugares em que se utiliza um cultivo incomum para alimentar os animais, em contrário à posição de Rabi Eliezer. Daqui aprendemos que o comportamento comum e corrente das pessoas impacta decisões sobre a Lei Judaica, que possui um viés sociológico.

                Os sábios não estudam as propriedades do romã para definir se é uma fruta espremível: eles analisam a realidade ao seu redor, pautada na crença do público e no costume popular. Os sábios não conceituam o termo ‘cultivo’ para efeitos de Kilaim: eles enxergam o que os agricultores comuns efetivamente cultivam na prática em seus vinhedos. Por essa razão, parece insustentável defender que a lei sempre deve ser imutável ou indiferente aos tempos atuais e insensível às questões pessoais. Em diversos casos, a Halachá está condicionada ao dinamismo e à fluidez das práticas humanas contemporâneas à sua vigência. Alguns podem enxergar isso como uma fraqueza ou fragilidade jurídica, ou até mesmo como um prenúncio de heresia, pois desprezam a ideia de que a Lei Judaica deve ser definida pelas práticas populares contemporâneas, que podem variar de uma década para outra. No entanto, talvez justamente essa flexibilidade é o que qualifica a Halachá para atingir sua finalidade suprema: ser um guia eterno e uma bússola constante e atualizada, apta a regular a vida de todo e qualquer judeu, para sempre!

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